
“O sensível está nas dobras do tempo”
Ailton Krenak
O planeta reclama um pouco de paz diante da voracidade extrativista que nunca cessa seu transe. Um mundo que estranha a organicidade da vida precisa conviver com resíduos, restos e retalhos na produção de sentidos, também na arte. O desafio encarado pelo coletivo Kókir está dentro desse dilema: expressar o sentido de uma arte originária sem a disposição da vasta escolha de materiais como corantes naturais, fibras e cerâmica, que supriu o ofício de artesãos, criadores de expressão e arte na tradução içada pelos dois artistas que carregam o coletivo Kókir.
As criações presentes nessa mostra seguem o compromisso de moldar artefatos a partir dos materiais que sobram em um mundo destroçado pela ‘sociedade da mercadoria’, como Kopenawa Yanomami designa a humanidade comedora de terra. Na primeira década do séc. XXI o coletivo já traz elementos dessa linguagem híbrida que configura carrinho de supermercado com os padrões tradicionais de clãs da etnia Kaingang, assim como objetos de utilidade no cotidiano: gaiolas, grades de ventilador, plantas de plástico e carrinhos de feira. Não apenas criar imagens ou design, mas inventar usos para materiais desgastados pela hiper exposição como o plástico, presente em muitos objetos. Um transe entre o que foi e o pode ainda ser, uma mistura/vãja, em labor de refazer sentido em um descartado mundo em crise de paradigmas, que já alcançou há tempo, o limite dos materiais. Ferro, cimento e vidro instituíram o discurso do pós capitalismo e engordam tudo o que surge na paisagem.
O sensível está nas dobras do tempo, como as formas ou design de objetos do cotidiano na cultura Kaingang, um povo originário que experimenta a violência extrativista também nos elementos constitutivos do seu repertório criativo, assim como em seus corpos e territórios. Mistura/vãja pode ser lida aqui como uma expressão transtornada da realidade material do mundo que exauriu as fontes de água limpa e está prestes a retirar, do rio que persiste a correr, o último peixe. Mas a mistura do Kókir não apenas reflete o transtorno, a fome e a escassez de matérias primas tradicionais nos territórios indígenas. Da mistura também emergem, em criações compartilhadas, muitas vozes apagadas, povos extintos e reinvenção de identidades, lutando para resistir. Juntando terra, plástico e fome ancestral em criações com povos de diferentes etnias, essa mistura expõe sincronias e contradições. Como nos alertam os antigos fazedores desta persistente matriz gráfica que informa as ancestrais marcas e pinturas corporais de cada clã da etnia Kaingang.






















