
“Dos mares, das águas”
NARA GUICHON
Exposição individual
Curadoria: Paula Ramos
“Dos mares, das águas”
Paula Ramos
Há certa unanimidade entre cientistas: viemos do mar. O oceano, que hoje cobre 70% da superfície terrestre, parece ter oferecido um ambiente acolhedor, com as condições químicas favoráveis para o surgimento e o desenvolvimento das primeiras formas de vida, há pelo menos 4 bilhões de anos. Corpo de água contínuo a envolver a Terra, ele é origem e base de nossa existência, regulando o clima global, produzindo mais da metade do oxigênio que respiramos, abrigando milhares de espécies e assegurando alimento e trabalho a bilhões de pessoas. Apesar disso, permitimos que agonize, vítima de uma combinação perversa: ganância, estupidez e omissão.
Ano a ano, pesquisadores alertam para os efeitos da mineração em águas profundas, para o caráter predatório da sobrepesca, para a acidificação das águas; ano a ano, as temperaturas da superfície oceânica quebram sucessivos recordes, levando ao branqueamento e à morte de recifes de coral, a maior estrutura viva do planeta; ano a ano, crescem os índices de animais exterminados pela ingestão de plástico, pela asfixia por sacolas, pelo estrangulamento por “redes fantasma”, as redes de pesca perdidas ou descartadas em alto mar.
A obra de Nara Guichon (Santa Maria, RS, 1955) nasce, em grande medida, dessa perplexidade, convocando-nos a pensar sobre os modos de vida que adotamos e sobre a urgência de tecermos outras relações com a nossa casa, a Terra. Sua poética, resultado de um trabalho continuado, resiliente e de grande maturidade formal e conceitual, é também um manifesto que honra os ofícios e as práticas artesanais.
Vivendo tal eremita, em uma habitação ecológica no litoral sul de Florianópolis, a artista têxtil e ambientalista tem o costume de, todas as manhãs, caminhar pela praia. Foi em 1998, observando detritos arrastados pelas correntes marítimas, bem como redes de pesca abandonadas feito lixo, que ela resolveu se apropriar desse material. A motivação surgiu durante visita ao ateliê de Henrique Schucman, que começava a inserir descartes da indústria pesqueira em suas tapeçarias. Entusiasmada, Nara decidiu expandir a iniciativa, investigando as possibilidades das redes de poliamida.
Inicialmente despretensiosa, tal opção abriu um veio disruptivo e irreversível. Afinal, ela era reconhecida pelo emprego de elementos naturais, como lã, algodão, sementes e fibras vegetais. E, de súbito, abraçava um dos maiores vilões da degradação ambiental, cuja durabilidade e danos seguem incomensuráveis. “Trata-se de um material terrível? Sim, quando abandonado no mar, poluindo os oceanos, matando milhões de animais e aniquilando a nossa própria vida. Mas, uma vez que esse material existe e está no mundo como ‘lixo’, por que não podemos dar-lhe outro rumo, outro uso?”
Longe de apropriação ou reciclagem, o que Nara faz é transmutação. O processo inicia com a coleta e limpeza dos resíduos. Após, sob água, vinagre e fogo, vem a pigmentação com diversos ativos: cúrcuma, erva-mate, barbatimão, casca de cebola, ferro. Procedimento solitário e acurado de experimentação, o preparo das redes pode levar meses, e nele reside parte significativa do admirável mergulho da artista, que recupera o viço do que parecia morto e extrai de poucas substâncias os surpreendentes ocres, verdes, ferrugens e roxos que matizam e iluminam suas obras. Na base de tudo, portanto, a redenção da matéria, dando novo destino ao que era monturo; a crença nos saberes tradicionais, explorando as possibilidades do caldeirão alquímico; a profunda conexão com a natureza, que faz da mata o laboratório para suas metamorfoses cromáticas.
Durante pelo menos 20 anos, regida por princípios de sustentabilidade e ética socioambiental, Nara desenvolveu têxteis para moda e decoração. Todavia, a consciência de que seus produtos raramente eram adquiridos tendo em conta esses fatores, levou-a a uma gradual insatisfação. Entre 2017 e 2018, com coragem e desapego, encerrou um exitoso capítulo no campo do design, passando a dedicar seu tempo e habilidades às tramas que pulsavam, indômitas, em sua mente.
Livre de padrões comerciais e de juízos alheios, recuperou uma prática que a acompanhava desde a infância e que lhe deu convicção e solidez para fazer o que faz: o tricô. Com imensas agulhas e tiras de redes no lugar de fios, deu vazão a um tricotar vertiginoso. Em pouco tempo, viu-se criando peças com dois, três, quatro metros, assinaladas por sobreposições de camadas, cores e trapos. Dos refugos contemporâneos, pinçou também descartes de roupas, plásticos, ferros, sucatas. Matéria e processo, desse modo, ampliam nossa compreensão sobre valor, permanência e zelo para com a Terra, e dão o inequívoco recado: “é tempo de despertar”, como se pode ler no apêndice de uma obra.
Mais recentemente, explorando um viés escultórico, Nara tem trabalhado com enrolamento de fios e o uso de estruturas de sustentação, como aramados, metais e madeiras. O resultado são peças portentosas, algumas com vocação instalativa, outras verdadeiros desenhos no espaço, em movimento orgânico de linhas, pesos e volumes.
Em seu enleio intuitivo, alicerçado na experiência, Nara vai estabelecendo diálogos ora harmônicos, ora infensos, entre superfícies ásperas e macias, cores frias e quentes, curvas côncavas e convexas, planos e proeminências. E então transbordam configurações que lembram cipós, ninhos, plantas trepadeiras, raízes, arquipélagos, organismos aquáticos, anelídeos, antozoários. Emergem as formas que, em seu íntimo, com memória, fúria e poesia, são processadas – tal como o mar que regurgita os animais mortos, o lixo, as redes de pesca.
Redes são a matéria-prima de Nara Guichon. Mais do que nunca, vivemos em rede, conectados virtualmente, mas só em rede, assumindo o compromisso de conexão com o planeta, daremos outro futuro a nós mesmos. Esse é o grito da artista, tentando nos lembrar de onde viemos: dos mares, das águas.














