“Através da espuma”
SOPHIA PINHEIRO
Exposição individual
Curadoria Clarissa Diniz
Através da espuma, primeira individual de Sophia Pinheiro, enseja movimento. Não poderia fazer-se de solidez a reunião de trabalhos dessa artista que é também educadora, cineasta, ilustradora, pesquisadora, militante. Coerente com a multiplicidade de sua trajetória no vasto campo da criação e da luta, esta é uma exposição que nasce efusiva, manifestando as forças de uma água agitada cuja fertilidade se espraia como espuma.
Pinturas liquefeitas ocupam delicadamente os espaços da galeria. Poética e politicamente feminista, Sophia Pinheiro pouco sente de desejo diante da dura quadratura dos chassis de madeira ou da densa trama do linho. Outra é a sensualidade que o seu fazer pictórico tem cultivado. Assim, na Carmo Johnson Projects, nosso olhar penetra pinturas translúcidas que — elaboradas sobre sedas e papéis artesanais de rara transparência e brilho — flutuam no espaço, envolvendo tatilmente a nossa percepção visual.
Sobre superfícies diáfanas, a artista não apenas pinta com água: sobremaneira, ela pinta como água. Suas obras não têm a intenção primeira de fazer figurar, mas fundamentalmente de performar a aquosidade da qual, como espuma, emerge o seu imaginário. Mais do que metáfora, o título da exposição é, portanto, um enunciado acerca dos modos de seu fazer artístico.
Embalada pelo imaginário de seus sonhos e mirações — onde diferentes viventes se imiscuem, coexistindo entre terra, água e ar —, Sophia Pinheiro cria em fluxo. Sem projetar paradeiro, seus desenhos e pinturas vão se formando como pororoca. É da frondosa e movente convergência entre gestos e materiais que, aos poucos, brotam formas, imagens, narrativas. Entre a aquarela, o pastel oleoso ou o lápis, são as próprias manchas de cor que conduzem o nascimento e a metamorfose de montanhas, pulmões, insetos, gotas, casulos, seios, flores, rios, estrelas, espirais, asas... Nessa direção, seu assunto não é a flora, a fauna ou as quimeras, mas eminentemente “o corpo que se transforma e flui, espiralando como a própria água em seus múltiplos estados e contrastes”, tal como pontua a artista.
Compreendida como um “fluxo vital que não cessa”, a obra de Sophia experimenta concepções estético-políticas que são fundamentalmente da ordem da vida. Interessada em perspectivas ontocósmicas e pedagógicas que se afastam da linearidade como paradigma de racionalidade e de método de trabalho, é como território de imaginação e de ensaio de outras formas de vida que Pinheiro experimenta as formas da arte. Assim, ao percorrermos os voluptuosos e transbordantes azuis, roxos e vermelhos de Através da espuma, encontramos menos uma galeria de signos do que um imaginário em movimento — índice de uma poética que vem sendo elaborada na costura entre perspectivas das artes visuais, da educação, do cinema e da antropologia.
É nesse território culturalmente diverso que, na exposição, testemunhamos imagens forjadas entre o solo e o fogo. Numa videoinstalação, sobre sedas pintadas com aquarela de crajirú, urucum e terra, Sophia Pinheiro projeta o filme Wajxaqib' B'aatz (2025), fruto de sua experiência durante o ano novo lunar Maya, na Guatemala. Ao longo de uma noite e um dia, percorrendo montanhas e cidades, a comunidade Maya presenteia oferendas e fogueiras ao cosmos, num rito de gratidão e proteção. Foi participando do ano-novo de 2022 junto à curandeira Flor de María Álvarez Medrano que artista sentiu a força das lutas sociais que não se separam de seus sagrados.
Por isso, em Através da espuma, além das pinturas que constituem sua coluna vertebral, estão apresentados trabalhos de outros momentos da trajetória da artista. Em especial, a série de longa duração Vândalas Mascaradas (2013): composta por desenhos, fotografias e performances. Partindo de sua memória afetiva com festas populares como as Cavalhadas de Goiás, Sophia evoca as ambivalências visuais entre a euforia da guerra e da festa para elaborar uma espécie de revide de gênero. Política e iconograficamente, as Vândalas Mascaradas acolhem e brincam com as dimensões bélicas que, entre a defesa e o contra-ataque, têm marcado as experiências sociais e íntimas de mulheres cis e trans no âmbito das estruturas patriarcais.
Sob armaduras carnavalizadas, corpas de curvas ondulosas ameaçadoramente munidas de pelos e cores estridentes, portam máscaras, onças, espadas, dentes, chifres. Não fetichizam a guerra, senão celebram a resistência. Amorosamente protegendo umas às outras, as Vândalas montam trincheira e evocam animalidades e espiritualidades como aliadas. Ao encararem o conflito, transmutam dor em cura, assim ombreando-se às recentes cerâmicas As contadoras do tempo III (2025), esculturas cujas cavidades preenchidas por ervas dão à luz a um rito de defumação quando inflamadas pelo fogo.
É sob o mesmo pano de fundo da violência de gênero, essa que tragicamente adoece o Brasil — um dos países mais feminicidas do mundo —, que Sophia Pinheiro simbolicamente incrusta flores e pedras em seu corpo, na região situada entre os seios e o abdômen, realizando pequenos ritos de cuidado que são agora apresentados no conjunto de fotografias Plexo Solar (2025). Reunidas, as imagens revelam como, ao lado do caráter incendiário que identifica a série Vândalas Mascaradas e do trabalho público de militância e educação popular desenvolvido pela artista junto aos movimentos indígenas, sua obra igualmente inscreve-se como intimidade, tal como revela a fotografia Através da espuma (2025), em coautoria com Rafael Avancini. Nela, o torso nu de Sophia se funde às linhas e cores de sua pintura — a qual, por sua vez, recusa a circunscrição da moldura e, entornada e contaminante, convida-nos a habitar a inseparabilidade entre vida e arte.
É com similar intencionalidade que Sophia Pinheiro nos recebe na Carmo Johnson Projects com uma audioinstalação que combina sonho e desejo. Embebidos pela colorida luminosidade de sua poética, é através da voz e da respiração da própria artista que somos sensualmente conduzidos pelo seu imaginário, um mundo no qual Sophia se mostra como parte de uma trama geracional. No díptico de fotografias Vândalas Mascaradas, da série Festa da Fúria (2021) em coautoria com Fe Avila, e no objeto Máquina de Ariadne (2025) — criado a partir de uma colcha de retalhos costurada pela bisavó da artista —, a passagem do tempo se faz como a matriarcal continuidade da vida, desdobrando-se entre filhas, mães, avós, bisavós... Aninhada entre as suas, Sophia Pinheiro assim nos faz ver que, enquanto espumamos de raiva, podemos encontrar, na espuma, um recanto de proteção, repouso e carinho.
Afinal, entre rãs e cigarrinhas, são vários os seres que sabiamente nos ensinam que, além de movimento, espuma também é ninho.